LIVRO: AGROECOLOGIA E A PRESERVAÇAO DO MEIO AMBIENTE (CAPÍTULO 04)

OPEN ACCESS PEER-REVIEWED CHAPTER

PROGRAMAS DE MELHORAMENTO GENÉTICO COM ENFOQUE PARTICIPATIVO

GENETIC IMPROVEMENT PROGRAMS WITH PARTICIPATORY APPROACH

 
  2022 Editora Science / Brazil Science Publisher
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CAPÍTULO 4

PROGRAMAS DE MELHORAMENTO GENÉTICO COM ENFOQUE PARTICIPATIVO

GENETIC IMPROVEMENT PROGRAMS WITH PARTICIPATORY APPROACH

DOI: https://doi.org/10.56001/22.9786500451016.04

Submetido em: 23/01/2023

Revisado em: 10/02/2023

Publicado em: 15/02/2023

 

Demerson Arruda Sanglard

Universidade Federal de Minas Gerais, Instituto de Ciências Agrárias, Montes Claros-MG

http://lattes.cnpq.br/7417873079167401

Ana Carolina Ataide Silveira

Universidade Federal de Minas Gerais, Instituto de Ciências Agrárias, Montes Claros-MG

http://lattes.cnpq.br/2466104732305153

Jefferson Joe Moreira Alves

Universidade Federal de Minas Gerais, Instituto de Ciências Agrárias, Montes Claros-MG

http://lattes.cnpq.br/4133593105061762

Luan Souza de Paula Gomes

Universidade Federal de Minas Gerais, Instituto de Ciências Agrárias, Montes Claros-MG

http://lattes.cnpq.br/5387425290856112

Matheus Henrique Teixeira

Universidade Federal de Minas Gerais, Instituto de Ciências Agrárias, Montes Claros-MG

http://lattes.cnpq.br/2443254354962216

Phelipe Souza Amorim

Universidade Federal de Minas Gerais, Instituto de Ciências Agrárias, Montes Claros-MG

http://lattes.cnpq.br/3729844181884351

Flávia Échila Ribeiro Batista

Universidade Federal de Minas Gerais, Instituto de Ciências Agrárias, Montes Claros-MG

http://lattes.cnpq.br/9175849604614635

 

 

Resumo

Esta proposta visa promover o desenvolvimento de agricultores familiares do município de Montes Claros-MG, a partir do manejo da diversidade genética de milho com enfoque na agrobiodiversidade, levando em conta critérios de sustentabilidade ambiental. No contexto de um agroecossistema funcional, ambientes marginais possuem uma lógica própria no estabelecimento de espécies e que não se repete em um centro de pesquisa. Portanto, esta proposta prevê a execução de estratégias de avaliação, produção e melhoramento participativo em milho visando o desenvolvimento de variedades adaptadas aos ambientes com estresses específicos. Espécies de adubos verdes serão avaliadas em diferentes sistemas com manejo agroecológico, no qual diferentes culturas, incluindo o milho, serão consorciadas ou cultivadas em rotação. Espera-se que as estratégias de execução promovam a multiplicação de polos locais em comunidades rurais do município, incluindo seus distritos, adotando-se o desenvolvimento local sustentável (DLS). O milho será utilizado como espécie indicadora e de referência metodológica durante a execução das ações que compõem o projeto: (i) Diagnósticos locais participativos; (ii) Manejo da diversidade genética do milho e espécies de adubos verdes em sistemas agroecológicos e; (iii) Cursos de capacitação. O desenvolvimento das ações do projeto contribuirá para a agricultura contextualizada ao semiárido mineiro, resultando em oferta de alimentos saudáveis, de baixo custo e maior segurança alimentar.

Palavras-Chave: áreas marginais, resgate, polos locais descentralizados, diagnósticos participativos, segurança alimentar.

Abstract

This proposal aims to promote the development of family farmers in the municipality of Montes Claros-MG, based on the management of corn genetic diversity with a focus on agrobiodiversity, taking into account environmental sustainability criteria. In the context of a functional agroecosystem, marginal environments have their own logic in establishing species, which is not repeated in a research center. Therefore, this proposal foresees the execution of evaluation, production and participatory improvement strategies in maize aiming at the development of varieties adapted to environments with specific stresses. Green manure species will be evaluated in different systems with agroecological management, in which different crops, including corn, will be intercropped or grown in rotation. It is expected that the execution strategies promote the multiplication of local poles in rural communities of the municipality, including its districts, adopting sustainable local development (DLS). Corn will be used as an indicator species and methodological reference during the execution of the actions that make up the project: (i) Participatory local diagnoses; (ii) Management of genetic diversity of maize and green manure species in agroecological systems and; (iii) Training courses. The development of the project's actions will contribute to agriculture in the context of the semi-arid region of Minas Gerais, resulting in the supply of healthy, low-cost foods and greater food security.

Keywords: marginal areas, rescue, decentralized local poles, participatory diagnoses, food security.

 

 

Introdução

O melhoramento genético de plantas é a mais valiosa estratégia para o aumento da produtividade de forma sustentável e ecologicamente equilibrada. Inicialmente era uma arte, pois desde a época dos primeiros agricultores, as sementes dos tipos mais desejáveis foram separadas para as continuidades das espécies (BORÉM et al., 2021). Atualmente, os vastos conhecimentos científicos têm conduzido o profissional melhorista a resultados previsíveis, acompanhando a evolução tecnológica e contribuindo para o bem-estar da humanidade (MACHADO; MACHADO, 2011; SPAGNUOLO et al., 2016).

Estima-se que metade do incremento da produtividade das principais espécies agronômicas nos últimos 50 anos seja atribuída ao melhoramento genético. Em face da crescente preocupação com a ética ecológica e valorização da agricultura sustentável, o melhorista assume ainda maior responsabilidade na elevação da produção mundial de alimentos, buscando reduzir a quantidade dos insumos artificiais utilizados (MACHADO, 2014).

A pesquisa de novas variedades ganhou um enorme impulso com o arsenal técnico-científico gerado pelo melhoramento convencional e, mais recentemente, com o desenvolvimento da engenharia genética e das culturas in vitro. A orientação dessa dinâmica foi, por muitos anos, a obtenção de produtividades máximas, esquecendo-se de outras características atreladas à adaptabilidade das espécies e das variedades (MACHADO; MACHADO, 2009). Os resultados foram surpreendentes, mas, ao privilegiar o aspecto produtividade em detrimento de outros, houve uma redução da variabilidade genética desses novos cultivares, que se tornaram bastante vulneráveis a pragas e doenças, além de muito exigentes em termos de balanço hídrico e fertilizantes químicos industrializados (ALTIERI, 2012). No caso destes últimos, o impacto tornou-se muito evidente através das recentes manchetes internacionais, por circunstâncias do conflito envolvendo Rússia e Ucrânia, principais fornecedores destes insumos no cenário mundial (CAMPELO JUNIOR et al., 2022; DELLAGNEZZE, 2022).

No plano da agrobiodiversidade, esse sistema moderno vem reduzindo aceleradamente o uso de variedades, concentrando-se apenas naquelas de alta resposta ao uso de fertilizantes (ARAÚJO, 2016). Para dar alguns exemplos concretos, 80% das variedades de milho do México (centro de origem dessa planta) desapareceram desde 1930. Na China, em 1949, eram cultivadas aproximadamente 10 mil variedades de trigo. De acordo com Parteniani (2000), na década de 1970, apenas mil variedades continuavam em uso. Nos EUA, 91% das variedades de milho utilizadas no começo do século já desapareceram, e a quase totalidade da produção se apoia em menos de uma dezena de híbridos. Além disso, houve uma profunda concentração das espécies responsáveis pela alimentação da humanidade através da uniformização do mercado de alimentos (commodities), tendo sido desprezadas espécies importantíssimas para a segurança alimentar nos planos local e regional (ANDRADE; MIRANDA, 2008). Enfim, hoje são cultivadas menos espécies e menos variedades, o que representa uma ameaça à segurança alimentar.

Esta erosão genética coincide com o enfraquecimento da agricultura familiar tradicional em todo o mundo (FAO, 2012; 2018). Por múltiplas formas e causas, os agricultores familiares não conseguem manter plantios em suas terras, sendo substituídos por empresas que aplicam o pacote tecnológico moderno das monoculturas agroquímicas e mecanizadas (MACHADO, 2007). Com os pequenos produtores, vão-se, também, variedades locais e o conhecimento tradicional associado dos recursos genéticos – uma perda incalculável para a humanidade (SOARES et al., 1998; ALMEKINDERS; ELINGS, 2001; SPERLING et al., 2001; CLEVELAND; SOLERI, 2002; Elias et al. 2004; ALTIERI, 2012; KISTLER et al., 2018). Essa perda afeta, inclusive, o próprio melhoramento genético convencional, que não terá mais essas variedades à sua disposição (MACHADO; MACHADO, 2007; MACHADO, 2014) um verdadeiro reservatório de genes que poderiam contribuir na solução das mais diversas problemáticas agrícolas.

Diante do contexto apresentado, propõe-se neste trabalho um levantamento sobre os principais preceitos que caracterizam as dinâmicas de um Programa de Melhoramento de Plantas com Enfoque Participativo, voltado para agroecossistemas específicos.

Metodologia

Programas de Melhoramento Genético Participativos costumeiramente são embasados nos métodos que compõem a pesquisa-ação, a qual, por sua vez, foca na percepção do problema da pesquisa como sendo o mesmo do público participante. Segundo Thiollent (2009), a pesquisa-ação, além de demandar participação e envolvimento do público, resulta em ação planejada sobre os problemas detectados na fase investigativa. Busca-se na pesquisa-ação e nos seus procedimentos, a orientação metodológica para desenvolver-se um trabalho com a pretensão de desempenhar papel ativo na própria realidade dos fatos observados, de forma a estudar dinamicamente os problemas, decisões, ações e tomadas de consciência que ocorrem entre os agentes durante o processo de transformação (THIOLLENT, 1988). Por meio da formação de grupos para convivência com a comunidade, realiza-se uma escuta sensível com o auxílio de visitas domiciliares e entrevistas, as quais visam conhecer os moradores, suas condições de vida no meio rural e, através destas, interagir com a comunidade e com a academia (WHYTE et al., 1991; ALMEIDA, 1997; ZIEMBOWICZ et al., 2007). Nesta perspectiva, após a análise dos resultados das reuniões com os grupos, as informações e impressões do diálogo com os agricultores familiares serão apresentadas, discutidas e validadas com eles próprios. Posteriormente, nas ocasiões de novos encontros e retornos aos mesmos locais anteriores, gera-se interação e produção de um entendimento coletivo sobre a compreensão da ação cooperativa, por meio do diálogo entre pesquisador e demais atores envolvidos.

Resultados e Discussão
  • Relação entre agricultura e biodiversidade

Há mais de 10 mil anos, os homens deram um passo fundamental no seu processo de civilização, quando iniciaram a produção de alimentos através do plantio de espécies selecionadas e da domesticação de certos animais selvagens (ERICKSON et al. 2005; HANCOCK, 2005). Até então, os alimentos eram coletados ou caçados e a sua reprodução/multiplicação seguia as leis naturais de cada espécie e de cada ecossistema (RINDOS, 1984).

Por um longo processo de tentativa e erro, inúmeras gerações de agricultores aprenderam a criar as melhores condições possíveis para a máxima e mais segura produção das espécies que selecionaram para seu uso (DIAMOND, 2002). As formas que adotaram para garantir nutrientes, água e luz para seus plantios – e que variaram segundo as condições ambientais e culturais, com maior ou menor produtividade e durabilidade segundo a seleção e o melhoramento de variedades, dentro de cada espécie – tiveram um papel fundamental (HANCOCK, 2005). Essa diversidade cultural, agindo sobre a enorme diversidade ambiental, proveu a humanidade de uma infinidade de sistemas de produção, baseados em um grande número de espécies e formas de manejo (HARLAN, 1992). De tudo isso, resultou uma produção diversificada de alimentos que garantiu a sobrevivência da humanidade durante séculos.

Esse processo de seleção e melhoramento de variedades permitiu que as espécies domesticadas se adaptassem a condições diversificadas, segundo o nível genético e de diversidade. De acordo com Wright et al. (2005), o milho é um exemplo de espécie que apresenta variabilidade genética tanto intra como intervariedades. Essa variabilidade permite que ele possa ser cultivado em diferentes condições. Podemos observar que há milhos mais altos e mais baixos, com mais ou menos folhas, de cores e gostos diferentes, mais ou menos resistentes à falta ou ao excesso de água, mais ou menos tolerantes a um sem-número de pragas e doenças ou à carência de determinados nutrientes no solo e, finalmente, com maior ou menor produção de grãos, tudo isso em decorrência da variabilidade (CAMACHO VILLA et al., 2005; CARPENTIERI-PÍPOLO et al., 2010; GIUNTI et al., 2017).

No processo de seleção realizado pelos agricultores ao longo dos séculos, é claro que o critério de maior quantidade de grãos por planta sempre foi determinante, mas nunca foi o único e, muitas vezes, não foi o principal (RINDOS, 1984). De que adianta, por exemplo, uma variedade de alta produção de grãos (alta produtividade), se ela é muito suscetível ao ataque de certas pragas e patógenos? Ou, ainda, se sua resposta é altamente dependente de solos com margens físico-químicas estreitas? Por outro lado, não se despreza a destinação do produto e seu peso crucial nos processos de seleção.

Além dessa relação direta com a biodiversidade, a agricultura tem uma relação indireta que é fundamental para sua existência. Rajão et al. (2020) argumentam que a nutrição das plantas, até pouco mais de cem anos, sempre veio quase que essencialmente do solo e, neste, a disponibilidade de nutrientes para absorção pelas raízes das plantas depende da atividade de uma extraordinária variedade de organismos que vão da minhoca a bactérias e fungos. Igualmente, a reprodução de muitas espécies depende de polinizadores como abelhas e outros insetos. Finalmente, o controle de pragas dependeu, por muito tempo, do equilíbrio entre a reprodução dessas pragas e a de seus predadores naturais, equilíbrio esse que está relacionado á existência de nichos de vegetação nativa que o favorecem.

A própria natureza da atividade agrícola implica uma intervenção do homem sobre o meio ambiente, artificializando, em maior ou menor grau, segundo a base tecnológica utilizada, os vários fatores que interferem no desenvolvimento das plantas selecionadas (ROSSET; MARTINEZ-TORRES, 2012; RAJÃO et al., 2020). Ao ponderar as reflexões de Molina et al. (2007) e Kaufmann et al. (2018), nas várias épocas e regiões em que se desenvolvem sociedades agrárias, esses níveis de artificialização do meio ambiente variaram muito, sendo que os sistemas produtivos foram sustentáveis segundo sua capacidade de estabelecer novos níveis de equilíbrio entre esses múltiplos fatores e o próprio ecossistema.

  • Impacto dos modelos agrícolas na biodiversidade

A expansão da fronteira agrícola, independentemente da base tecnológica que utilizar, far-se-á quase sempre pela substituição da vegetação natural por uma ou por muitas espécies cultivadas (MARICONDA, 2006). Em princípio, portanto, essa expansão é perniciosa à conservação da biodiversidade das espécies silvestres. Na realidade, esse quadro é mais complexo, e a base tecnológica, bem como outras condições como densidade de população ou disponibilidade de terras, vão interferir nessa relação entre a agricultura e a biodiversidade dos sistemas naturais (MACHADO, 2014).

Se tomarmos como exemplo o sistema milenar de cultivo sobre queimadas (conhecido como agricultura itinerante), pode-se afirmar que, havendo disponibilidade suficiente de terras para pousios longos, segundo as necessidades de recuperação da vegetação nativa, o sistema não só conserva, como também enriquece a biodiversidade (CAPORAL; COSTABEBER, 2002). O problema estabelecido é que já não há terra suficiente para completar o ciclo de recuperação, e o sistema entra, paulatinamente, em decadência, podendo, inclusive, levar à completa exaustão dos solos e à total incapacidade de regeneração da cobertura vegetal natural (CLEMENT et al., 2007).

As agriculturas tradicionais, em condições de equilíbrio com os fatores ambientais, tiveram alta durabilidade, sustentando-se ao longo de muitos séculos, como foi no caso das civilizações maia, inca e egípcia (HARLAN, 1992; HANCOCK, 2005). A partir da segunda metade do século XIX, teve início um processo que levou à busca da máxima artificialização do meio ambiente, visando controlar todos os fatores naturais que interferem na produção agrícola.

A pesquisa de novas variedades ganhou um enorme impulso com o arsenal técnico/científico que foi gerado pelo melhoramento convencional e, mais recentemente, com o desenvolvimento da engenharia genética e das culturas in vitro (BORÉM et al., 2021). A orientação dessa pesquisa foi, por muitos anos, a obtenção de produtividades máximas, esquecendo-se das outras características de adaptabilidade das espécies e das variedades. Os resultados foram espetaculares, mas, ao privilegiar o aspecto produtividade em detrimento de outros, houve uma redução da variabilidade genética desses novos cultivares, que se tornaram extremamente vulneráveis a pragas e doenças e também exigentes em termos de balanço hídrico e nutricional (LOUAFI et al., 2013). Essa redução da base genética tende a se agravar com a propensão dos melhoristas para utilizarem somente as próprias variedades comerciais como base para o desenvolvimento de novas variedades (MCKEY et al., 2012). Para compensar essas fragilidades, criou-se um sistema de controles via agrotóxicos, irrigação e adubação química. Mais recentemente, a engenharia genética vem diversificando essas características, introduzindo genes de resistência às pragas ou doenças ou de tolerância ao uso de herbicidas (MAZOYER; ROUDART, 2010; BORÉM et al., 2021).

 A tendência à extrema artificialização do meio ambiente combinou-se com a busca da máxima produtividade do trabalho via mecanização das práticas agrícolas, o que produziu uma pressão de expulsão de mão-de-obra do campo ao longo do século XX (MCNEELY; SCHROTH, 2006). É importante notar, entretanto, seu impacto sobre a biodiversidade como um todo e, em particular, sobre a agrobiodiversidade. A mecanização pesada reforçou ainda mais a tendência já existente nos sistemas capitalizados – o plantio extensivo de monoculturas (SEVILLA-GÚZMAN, 2002; SCHERR; MCNEELY, 2008). Para Shiva (2016), o excessivo trabalho do solo e uso intensivo de produtos químicos têm efeitos arrasadores sobre a micro e a mesofauna nas áreas cultivadas. Ao mesmo tempo, os pesticidas afetam o equilíbrio das cadeias tróficas e produzem também fortes impactos negativos sobre insetos benéficos, inclusive os polinizadores. Machado (2014) reitera sobre a paisagem transformada pelo sistema agroquímico de mecanização pesada, o que implica na eliminação de toda espécie que não aquele objeto da monocultura. O impacto sobre a cobertura vegetal natural é brutal.

Essa erosão genética coincide com a destruição da agricultura familiar tradicional em todo o mundo (MACHADO et al., 2011). Por múltiplas formas e causas, os agricultores familiares vão sendo expulsos de suas terras e substituídos por empresas que aplicam o pacote tecnológico moderno das monoculturas agroquímicas mecanizadas. Com os pequenos produtores, vão-se, também, variedades locais e o conhecimento dos recursos genéticos – uma perda incalculável para a humanidade (KAUFMANN et al., 2018). Essa perda afeta, inclusive, o próprio melhoramento genético, que não terá mais essas variedades á sua disposição. Machado et al. (2011) apontam ainda que os artífices da Revolução Verde alegam ter resolvido esse problema com a criação de bancos de germoplasma, mas suas insuficiências tecnológicas (vulnerabilidade a catástrofes etc.), políticas (os recursos deixam de ser das comunidades locais) e de concepção (congela-se a evolução das variedades conservadas) permitem afirmar que a erosão genética nos bancos é tão grave quanto no campo.

Os pequenos produtores que sobrevivem sofrem várias pressões para aderir ao sistema da Revolução Verde. Uma das formas mais perigosas de penetração desse modelo são justamente, os programas políticos de distribuição de sementes, que provocam a substituição das variedades tradicionais pelas “melhoradas”. As vantagens aparentes destas últimas quase sempre desaparecem, quando os agricultores são obrigados a suportar os custos reais do sistema de cultivo que tais variedades exigem para render o que prometem (FRANCO et al., 2013). Mesmo quando, excepcionalmente, algum agricultor familiar consegue apropriar-se desse pacote e financiar seu uso, ele quase sempre estará em desvantagem na concorrência com os grandes (BEVILAQUA et al., 2014) – ou porque sua área não permite maximizar o uso dos implementos, ou a qualidade do seu solo é inferior, ou, finalmente, por ter mais dificuldades no acesso ao crédito.

Mas, uma vez perdidas as variedades tradicionais, o retorno a um sistema diferenciado, com policultivos e criações, combinando espécies anuais com perenes e integrados com a vegetação nativa, torna-se difícil, pois as variedades desenvolvidas sob o paradigma do melhoramento convencional, bem como os recursos genéticos engenheirados, não se adaptam a essas condições (MCNEELY; SCHROTH, 2006; MOLINA et al., 2007; MURPHY, 2007; SCHERR; MCNEELY, 2008). O surgimento dos cultivares oriundos da engenharia genética traz riscos ainda não totalmente conhecidos no que se refere ao impacto ambiental. Assim como as variedades convencionais contribuíram para o desaparecimento das variedades tradicionais, as engenheiradas poderão fazer o mesmo pela substituição ou pela contaminação de outras variedades (no caso daquelas de polinização aberta) ou até mesmo parentes silvestres (MACHADO; MACHADO, 2009). Para Silva et al. (2017) essa situação é particularmente grave, uma vez que a pressão de liberação do plantio de novos organismos em território brasileiro é tão forte quanto o desconhecimento da sociedade sobre seus perigos e a falta de discussão aberta dos diversos aspectos em torno da biossegurança. Seguem os principais elementos de um Programa de Melhoramento Genético Participativo (Figura 1), com embasamento em Machado e Machado (2007) e Machado (2014):

 

 

Figura 1: Síntese das etapas que caracterizam um Programa de Melhoramento de Plantas Participativo, com enfoque nas agrobiodiversidades locais.

 

 

 

 

 

 

Fonte: Adaptado de Machado; Machado (2007).

 

Características

  • Variedades tradicionais, locais ou crioulas (maior diversidade);
  • Adaptabilidade às condições locais;
  • Seleção na roça (estresses ambientais);
  • Descentralizado;
  • Produção de subsistência (níveis moderados, porém sustentáveis);
  • Foco em caracteres secundários (sabor, empalhamento, armazenamento, etc);
  • Diversificação dos sistemas produtivos;
  • Incentivo aos mercados locais e regionais;
  • Segurança alimentar (controle e intercâmbio de sementes).

Diagnóstico Ambiental

  • Região específica onde o programa vai trabalhar, suas dimensões, topografia, recursos hídricos, fauna, cobertura natural e clima;
  • Qualidade dos solos locais e quais cuidados são tomados em relação a eles;
  • O que as pessoas buscam no meio ambiente?
  • Em que quantidades estão disponíveis esses recursos?
  • Quais os riscos ecológicos?
  • A agricultura da região do programa é homogênea?

Diagnóstico Cultural

  • Correspondência das técnicas agrícolas com a cultura local;
  • Incorporação do conhecimento local nas formas de manejo;
  • Resgate e aplicação de saberes locais sobre biodiversidade;
  • Resgate e respeito aos hábitos culturais que tenham relação com etapas de processos produtivos;
  • Observação de elementos culturais determinantes da diversificação da produção e sua relação com a segurança alimentar;
  • Valores culturais e sua relação com o calendário de trabalho;
  • Tradições folclóricas, festas, celebrações.

Diagnóstico Social

  • Histórico da propriedade e forma de acesso a terra
  • Participação da família nas atividades produtivas, destacando o número e idade de filhos, questões de gênero, entre outros;
  • Qualidade de vida e acesso a serviços básicos;
  • Valores alimentares e medicinais.

Diagnóstico econômico

  • Melhoria da renda familiar;
  • Garantia de produção de alimentos;
  • Estabilidade de produção e produtividade (níveis moderados, porém sustentáveis; diversificação dos sistemas de manejo e de espécies);
  • Redução de externalidades negativas que implica em custos para a recuperação e manutenção do agroecossistema;
  • Ativação da economia local e regional;
  • Agregação de valor à produção primária;
  • Presenças de estratégias de pluriatividade (diversificação);
  • Autossuficiência de alimentos e insumos, considerando as entradas e saídas do sistema.

Diagnóstico da agrobiodiversidade

  • Diversidade entre animais (inter e intraespecífica);
  • Diversidade de plantas (inter e intraespecífica);
  • Diversidade de insetos (inter e intraespecífica);
  • Diversidade de organismos do solo.
­­Considerações Finais

Os processos de domesticações das plantas realizados pelas civilizações humanas, estimados em torno de 15.000 anos, geraram as variabilidades e utilidades ao longo do tempo; mas que, nas últimas décadas, vêm passando por fortes pressões de homogeneização (erosões genéticas). Por tudo isso, são extremamente importantes mitigações que possibilitem a recuperação do que ainda resta de natureza crioula, além de que estes materiais se mantenham em circulação e exposição à seleção natural, em acompanhamento à dinamicidade dos agroecossistemas.

Agradecimentos

Esse trabalho foi fomentado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais - FAPEMIG, relativo ao projeto "Melhoramento Participativo de Milho com Enfoque na Agrobiodiversidade do Semiárido Mineiro". (FAPEMIG APQ-03554-14), Edital 07/2014 - Apoio a Projetos de Extensão em Interface com a Pesquisa.

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